domingo, 22 de abril de 2012

Viáticum Absconditus




Esconderijos do Caminho, Cavernas da Verdade, Poços da Vida!



         Certamente, os mais indicados para falarem sobre tão inexprimível viáticum (caminhada) são aqueles que em profundo despojamento existencial enveredaram pelos desertos rumo à inefável bem-aventurança, à beatitude indizível – a aquisição do Espírito Santo.[1] Contudo, ainda que em um auto-refúgio e em circunstâncias protetoras dos causticantes raios solares de tais desertos, aventuro e arrisco estas poucas linhas com o fim de registrar uma "impressão de fora" a respeito do Viáticum Absconditus místico-espiritual conhecido por monasticismo.

Breve Enfoque Histórico

         Sua gestação deu-se a partir do momento em que o remédio da revelação divina (duramente conservada pelo judaísmo) fecunda o óvulo da reflexão humana (racionalmente produzido pelo helenismo). No encontro providencial do esforço do homem com a revelação de Deus, portanto, nasce na palestina dos dias intertestamentários, o grande sustentáculo da mística e da espiritualidade – o movimento monástico. À luz da razão e da Palavra divina, o judaísmo palestinense dá à luz o Viaticum Absconditus rumo à las tinieblas divinas.[2] Nesse contexto, os essênios são historicamente a expressão primeva do monasticismo e João Batista escrituristicamente a nítida indicação da relação que teve este movimento com o movimento de Jesus desde os seus primórdios na palestina de então.
         Ao carismatismo itinerante[3] de Jesus e dos apóstolos sucedeu uma outra forma de carismatismo no seio da Igreja oficial – o carismatismo monacal. Aquele serviu à disseminação do Cristianismo sob o Império Romano, este serviu para a conservação e auto-preservação deste em meio à cooptação da Grande Igreja[4] com os ditames imperiais.
         Tal foi a genuinidade do carismatismo monacal ou monástico (evocação e continuação do monasticismo profético do Batista e do monasticismo comunitário dos essênios) que o laos cristão, o sensus communis fidelium[5]  não somente o aprovou, mas a ele recorria como a uma fonte de orientação ante as explicações sistematizadas da hierarquia clerical sempre mais rígida e secularizada. Mais adiante a própria hierarquia cede à insurreição pacífica, mas avassaladora dos monges. A mística e a espiritualidade já estavam identificadas com o pensamento e o estilo de vida monástico por mais que a Igreja oficial tentasse resguardá-las como relacionada ao ofício eclesiástico e a uma liturgia estonteante.
         Finalmente, a Igreja no Oriente opera a fusão entre o episcopado e o monasticismo para sua felicidade. Contudo, no Ocidente, onde o papa não impôs tal disciplina, o clero ficou sujeito ao descrédito popular e ao despreparo espiritual, não obstante, o maior preparo intelectual e o estereótipo da jurisdição papal propagado pelos antecessores e sucessores do ultra-montanismo por toda Idade Média. Em suma, toda caminhada do Oriente cristão foi inequivocamente mais aproximada do monasticismo, não acontecendo o mesmo com o a Igreja no Ocidente.
         Este enfoque histórico, em nome da brevidade e intencionalmente, somente abordou o monasticismo até o seu período medieval. Tencionamos, mas adiante, dar rápidas pinceladas nos períodos mais recentes de sua história. Agora, no entanto, também com brevidade, enfoquemos a postura protestante em face do nosso assunto.

Postura Protestante

         Sem dúvida, a tentativa de correção dos males insuportáveis do monasticismo ocidental fez com que o protestantismo assumisse uma aversão histórico-doutrinal frente ao Viaticum Absconditus.
         Sob os auspícios do racionalismo nascente e do humanismo crescente, o protestantismo jamais poderia conceber qualquer espiritualidade estranha à luz da razão. Isto conduziu o protestantismo à famosa ortodoxia luterana[6] e ao moralismo puritano-calvinista dos séculos posteriores à reforma.[7] Em ambos os casos toda "experiência do sagrado" foi reduzida e minimizada à doutrina e à ética. A antipatia por qualquer mística sacramental, tipicamente protestante, também contribuiu para o desenvolvimento de uma espiritualidade racionalista e moralista.
         Diante de tal postura, e frente à aversão ou mesmo redução do Viaticum Absconditus, surge o pietismo alemão, o reavivalismo inglês, o pentecostalismo norte-americano.[8] Todos tateando em busca da dimensão monástica perdida, a procura da experiência com o sagrado. Anelos de resgate em relação à configuração original do cristianismo – o despojamento existencial, o carismatismo monacal, o monasticismo, jóia perdida e substituída por reduções minimizantes, tais como: a piedade santificante, a santidade instantânea e a instantaneidade da "aquisição do Espírito Santo". Todas estas reduções, porém, são olhadas com desprezo pelos herdeiros legítimos da Reforma por causa dos maus odores doutrinários, ironicamente falando, da "justificação pelas obras" e da "questão do mérito".

Espiritualidade Oni-abrangente

Por mais justificadas, lógicas e racionais que sejam, as vias de espiritualidade propostas pelo Ocidente Cristão são geralmente reducionistas. Sob a tutela da razão, da reflexão teológica jurídico-hierarquicamente manipulável, as vias de espiritualidade ocidentais, por vezes, terminaram por reduzir a visão, minimizar a caminhada mística dos leigos e dos clérigos.
O protestantismo racionalista e moralista, assim como o catolicismo jurídico e secularizado, sempre estigmatizou o patrimônio comum da espiritualidade oriental – a mística. Esta, no âmbito cristão, foi resguardada pelo movimento monástico, sendo no Oriente Cristão paradoxalmente acentuada, juntamente com a hierarquia e a liturgia. A diferença básica é que, em nível de Oriente ortodoxo, a hierarquia e a liturgia não são os substitutos, mas sim os salvo-condutos mediante os quais a espiritualidade (leiga ou clerical) é não apenas conduzida, mas também produzida.
         A vida litúrgica da Igreja no Oriente é um contínuo chamado à espiritualidade. Esta, por sua vez, encontra-se não em uma proposta reducionista, em uma via minimizadora, mas em um convite litúrgico (calcado no exemplo dos bispos) a uma espiritualidade integral, a um apelo radical à exigência oni-abrangente do Reino – entrega do que se tem e do que se é – veiculada plenamente pela via monástica.

Práxis de Serviço

         Por um lado, o pragmatismo e utilitarismo norte-americanos; por outro, a práxis comunista e das teologias políticas européias e latino-americanas, perguntam qual a conseqüência prática, o lucro, a utilidade, a relevância histórica, e a própria crítica sócio-política da via monástica, visto ser ela uma caminhada escondida, um viaticum absconditus.
         A esta altura chegamos não a uma restrospectiva, mas a uma perspectiva do viaticum absconditus. Como o próprio ideal evangélico, o monasticismo privilegia a perspectiva de serviço aos irmãos, a práxis de serviço em relação ao mundo. Não haveria qualquer sentido na via monástica se de tal práxis se afastasse. Por isso, percebe-se como parte destinada à sustentação espiritual dos irmãos. Neste aspecto, a vida orante é encarada como serviço, superando na prática a distinção convencional entre igreja ativa e igreja passiva. Os que oram, longe de qualquer passividade, reconhecem a oração como ação ou atividade espiritual como é conhecida nos círculos monásticos do Oriente. Quanto ao serviço ao mundo, desde os primórdios o monasticismo traz no seu bojo o tom profético de protesto em relação ao sistema, à presente era, ao presente século mau, sendo isto expresso através da renúncia radical ao mesmo. A esta atitude passiva em direção às categorias terrenas contrapõe-se uma atitude ativa que o serviço profético prestado pelo monasticismo revela – a atividade intra-mundana na instauração dos conceitos e práticas do Reino de Deus. Neste sentido, o monge antecipa diante dos olhos do mundo uma nova era de justiça e paz. Através da renúncia aos bens materiais e da fraternidade em relação aos bens comunais, a justiça do Reino vigora em sua vida aos olhos de um sistema de injustiças. Através dos carismas extra-ordinários do Espírito Santo antecipa a paz do Reino no discernimento com que julga as causas humanas, pacificando-as, e nos sinais e prodígios que sinalizam o fim da desordem, da desarmonia cósmica, à semelhança dos milagres evangélicos e apostólicos. Enfim, na oração, no protesto, nos carismas, o monasticismo continua o profetismo veterotestamentário. Além disso, vidas como a de São Serafim de Sarov, São Francismo de Assis e de tantos outros, não excluíram o contato indiscriminado com o mundo a fim de transfigurá-lo.
         Dessa forma, concluímos que a práxis do serviço é uma constante, por mais contraditório que pareça, na vida daqueles que se entregam à caminhada escondida. Escondidos dos homens e achados por Deus são, na verdade, escondidos por Deus dos achados dos homens. Possuem caminhos escondidos, mas são esconderijos caminhantes. Ícones terrenos da Virgem-esconderijo do Altíssimo que nela habitou por nove meses... À semelhança de tamanha candura e aparente passividade, os que se entreguam a tão gloriosa via são uma espécie de Fiat sotérico por serem, em última análise, Esconderijos do Caminho, Cavernas da Verdade, Poços da Vida...

Jairo Carlos S. Jr.

                                                                                                                          

 

                                                                                                                           Paróquia de São João Crisóstomo

Caruaru – PE
Igreja Ortodoxa Sérvia
Diocese da América do Sul e Central
Reelaboração na quaresma de 2006




[1] Esta expressão é própria da espiritualidade ortodoxa conhecida como Hesicasmo e, mais especificamente, de São Serafim de Sarov.
[2] Vladimir Lossky, Teologia Mística de la Iglesia  de Oriente (Barcelona: Editorial Herder, 1982), pp. 19-33.
[3] Gerd Theissen, Sociologia do Movimento de Jesus (São Leopoldo: SINODAL, 1987), pp. 36-55.
[4] Raymond Brown, A Comunidade do Discípulo Amado (São Paulo: Paulinas, 1984), pp. 161-9.
[5] Expressão latina e técnica da área de eclesiologia e de exegese que siginifica: senso comum dos fiéis.
[6] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX (São Paulo: ASTE, 1986), p. 35-9.
[7] Antônio Gouvêa Mendonça, O Celeste Porvir – a  Inserção do Protestantismo no Brasil (São Paulo: Paulinas, 1984), pp. 35-9.
[8] Frederick Dale Bruner, Teologia do Espírto Santo (São Paulo: Vida Nova, 1986), pp. 28-44, demonstra como o pentecostalismo pode ser perfeitamente entendido como uma "americanização do protestantismo".

sábado, 21 de abril de 2012

Livrando-nos do Velho Fermento dos Fariseus!




– A Ortodoxia como a Plenitude da Lei de Deus –



            Em sua obra O Império do Efêmero, o sociólogo francês Gilles Lipovetsky abalou, de certo modo, o mundo erudito ao afirmar a moda como uma espécie de "carro-chefe" das mudanças que se processam em nossos dias. É claro que Lipovetsky referia-se a moda dos estilistas, mas isso me faz entender que cada vez mais se torna verdadeira uma idéia que sempre me intrigava quando eu ainda estava na igreja evangélica: aquilo que ocorre nos Estados Unidos e Canadá não leva muito tempo para ser reproduzido no Brasil como última moda.
Esta idéia me intrigava porque o que se reproduz não apenas são acontecimentos significativos vividos pelas igrejas protestantes norte-americanas, mas também todo tipo de novidades emergentes, desde as modas teológicas mais esdrúxulas à alarmante quantidade de práticas de adoração que, segundo a ala reformada calvinista apelando para a famosa Confissão de Westminster, não passam de "invenções dos homens e sugestões de Satanás".
Aos poucos fui assumindo que deveria haver algum tipo de culto que não sofresse a alteração das doutrinas enlatadas e modas importadas de toda natureza que invadiam as denominações evangélicas brasileiras. Algo mais original e perene que, na minha incredulidade, ainda não sabia ser possível existir intacto.
            Hoje, o que me ocorre relaciona-se aos últimos acontecimentos dentro do protestantismo. Trata-se do fato de evangélicos de todas as partes do mundo – incluindo seus clérigos ou pastores como são chamados – estarem convergindo para a fé ortodoxa em um agudo contraste com todo tipo de moda e em franca contradição com suas doutrinas e práticas de adoração. O que está realmente acontecendo? A esse respeito, talvez fosse bom começar pela pergunta:

O que está acontecendo ao redor do mundo?

            Eu pensava ser o único pastor evangélico brasileiro a me converter a Ortodoxia, mas agora me vejo com um ex-colega de seminário, de ministério pastoral, de mestrado e doutorado, assumindo a fé ortodoxa e dizendo, assim como me ocorreu há tantos anos atrás, tratar-se de um caminho sem volta. Ainda o ano passado, nossa pequena comunidade recebeu pelo batismo e crisma um ex-pastor evangélico com algumas de suas ovelhas. Isso confere com os inúmeros testemunhos de pastores norte-americanos que ingressam na Igreja Ortodoxa, como demonstra o livro Coming Home – Why the Protestant Clergy are becoming Orthodox que contém depoimentos de pastores anglicanos, episcopais, presbiterianos, batistas, assembleianos, e de todo tipo de igrejas evangélicas que estão se convertendo à Ortodoxia, alguns dos quais com suas comunidades inteiras.
Recentemente, recebi através de e-mail o seguinte testemunho de alguém que preferi não mencionar o nome por não conhecê-lo. Ele escreveu a um site ortodoxo nos seguintes termos:
Bom dia,
Estou muito feliz com o ingresso no grupo, sinto que estou no caminho certo para meu aprendizado.
Vou contar um pouco de mim, através da experiência e vivencia religiosa, sou batizado na fé católica romana, não posso dizer que sou um assíduo freqüentador de alguma paróquia, pois não me encaixei em nenhuma, não por falta de fé, mas por uma certa convicção pessoal que nas igrejas não se ministram somente a religião, costuma sim haver uma mistura de política, interesses pessoais e clericais, uma série de fatos que ao meu ver afastam a verdadeira fé. Não se prega textos verdadeiros e sim uma adaptação de fatos que mudam de acordo com a sociedade, eu acho errado, nós é que temos que nos encaixar na fé, não a fé em nós, com essas interpretações a palavra original é perdida e modificada e com o tempo os valores são perdidos, visto a situação da atual sociedade que vivemos. Aos meus olhos, vejo pessoas que se movem ao seu próprio bem e não no do próximo ou do todo, a vontade de Deus. Careço de estudos, de exemplos. tenho fé em Cristo, acredito nele e em Maria sua mãe, acredito também na fé que moveu muitos mártires e suas histórias servem de exemplo e força. Nunca perdi a esperança de encontrar os verdadeiros ensinamentos, mas toda vez que tento debater com algum religioso, ou ele se esquiva, ou prega barbaridades como vejo na fé protestante. Acredito que a seriedade dos Ortodoxos tenha como base os ensinamentos originais. Perdoem-me se falei, besteiras mas é o meu ponto de vista hoje. Sei que todos podem me ajudar e acredito que quem procura a verdade , encontra, com justiça e merecimento.
Muito obrigado, pelas boas vindas e repito, estou muito feliz de estar no meio de vocês todos.

            Ouvi recentemente de um pastor anglicano que quando se formou nos Estados Unidos foi aconselhado por um colega de denominação a comprar livros de teólogos ortodoxos, o que não tem exitado em fazer, possuindo em sua residência obras como On Human Being – A Spiritual Antropology, de Olivier Clement, e outras, além de muitos ícones ortodoxos. Ele me disse que esse seu colega lhe afirmou na ocasião que estaria caminhando definitivamente para a Igreja Ortodoxa dada a crise porque passa o protestantismo naquela nação.
            A respeito deste mesmo pastor ainda tenho algo muito significativo a contar. Ele me disse que um dos principais autores anglicanos de Londres, chamado Michael Harper, que era um daqueles pastores que divulgavam em muito o pentecostalismo em meio à sua igreja, também ingressou na Ortodoxia. Ele conheceu o pastor Harper em Singapura. Trata-se do mesmo padre ortodoxo que acolheu um ex-aluno meu de teologia em sua capela em Londres. O fato é que, o ano passado, meu ex-aluno ligou para dar a notícia de que agora havia se convertido à Ortodoxia por causa do fato de que a mesmíssima liturgia que nós celebramos no Brasil é a que o Padre Michael Harper celebra em Londres. Que alegria! Ainda mais quando li um artigo intitulado The Waves Keep Coming in The Evanglical, Charismatic, Orthodox Axis em que o Padre Michael Harper menciona não somente a relação entre John Wesley, o avivamento inglês e a Igreja Ortodoxa, mas também chega a mencionar o contato de Alexander Boddy – o iniciador do movimento pentecostal entre os anglicanos em Londres, Singapura e outros lugares – com a Igreja Ortodoxa. O pastor Boddy passou um tempo em um mosteiro ortodoxo na Rússia, de onde trouxe ícones que expunha na sala de sua residência em Londres.
Quanta novidade, não? Seriam elas, "invenções dos homens" ou mesmo "sugestões de Satanás", conforme as expressões da confissão reformada calvinista de Westminster? Tão sacrílego posicionamento está alicerçado em uma falsa interpretação da lei de Deus responsável por dividir a lei de Moisés – e isso não apenas para fins didáticos – naquilo que chamam de "lei moral" (os dez mandamentos) e "lei cerimonial" (os preceitos relacionados ao culto). Segundo os calvinistas – que são neste aspecto seguido pela maioria dos evangélicos – somente a lei moral vigora até hoje em meio à nova aliança instituída por Cristo, enquanto que a lei cerimonial foi por Ele abolida. Respondamos a tão impiedosa heresia, levantando mais uma pergunta:

Por que a fé ortodoxa está sendo assumida pelos evangélicos?

            A fé ortodoxa jamais inventou, e muito menos, padronizou uma forma de adoração. Sua liturgia é única, imutável e sem alterações não porque tenha engessado e mantido qualquer tipo de tradicionalismo ou conservadorismo em sua adoração, como querem alguns, mas simplesmente porque a liturgia ortodoxa foi estabelecida pela lei de Deus conforme escrita e instituída por Moisés nos primeiros livros da Bíblia e, portanto, não é uma padronização humana ou uma imposição imperial de Constantinopla, mas uma instituição divina a permanecer intacta como atesta o próprio Jesus no sermão do monte ao afirmar:

Mh nomishte oti hlqon katalusai ton nomon... alla plhrwsai
Não penseis que vim revogar a lei... vim para cumprir (ARA)
Não cuideis que vim destruir a lei... mas cumprir (ARC)

            Aqui, algumas observações precisam ser feitas. O verbo grego 'katalysai' é traduzido ora por destruir, ora por revogar, o que equivale – como é o seu sentido literal – a traduzi-lo por: precipitar. Em outras palavras, Cristo não veio para jogar a lei em um precipício a fim de que fosse destruída ou, como é uma linguagem mais jurídica, revogada, abrogada ou abolida. E por falar no verbo abolir, vale ressaltar que é o verbo que, em algumas versões, aparece em Efésios 2:15 para se referir também à lei:

ton nomon twn entolwn en dogmasin katarghsaV
a lei dos mandamentos na forma de ordenanças aboliu (ARA)
a lei dos mandamentos que consistia em ordenanças desfez (ARC)

Trata-se de uma contradição? Será que Jesus disse que a lei não seria abolida e São Paulo disse o contrário? A esse respeito, devemos firmar que há bons motivos para respondermos com um não a esta pergunta. O primeiro motivo reside no fato de que o verbo utilizado por São Paulo não é o mesmo utilizado por São Mateus ao fazer menção das palavras de Jesus no sermão do monte. Isso pode ser confirmado tanto no texto grego como em algumas traduções. Mas, é verdade que a isso alguém poderia objetar que se trata de verbos com um significado sinônimo. Isso é verdade mesmo. Todavia, o segundo motivo de não haver contradição entre as palavras de Cristo e as de São Paulo reside em uma melhor compreensão da expressão 'en dógmasin' (= em ordenanças). Aquilo a que São Paulo está se referindo como algo abolido não é a lei dos mandamentos, quer em seu aspecto moral, quer em seu aspecto cerimonial, e sim aquilo que "consistia em ordenanças" ou possuía "forma de ordenanças". Eis, então, porque a contradição entre Jesus e São Paulo é apenas aparente. E para descobrir isto, é somente focalizar mais uma pergunta: De que "ordenanças" falava São Paulo?
            A resposta a esta pergunta vem da expressão usada por São Lucas no livro dos Atos dos Apóstolos quando relata o episódio do primeiro concílio da Igreja que se deu em Jerusalém. O concílio se reuniu para resolver uma questão que havia surgido entre judeus e gentios no meio da Igreja. Ao final deste concílio, diz São Lucas, pareceu bem ao Espírito Santo e aos apóstolos resolver a questão através do envio de alguns irmãos às igrejas a fim de comunicarem "as decisões (= ta dogmata = ta dógmata) tomadas pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém". Tais decisões, que os demais concílios da Igreja continuaram a chamar de "dogmas" iniciavam toda uma tradição oral que se estabeleceria na Igreja, a qual foi posteriormente sendo registrada nas atas dos concílios, o que resultou na formação da Tradição Apostólica, ou seja, o modo pelo qual os concílios interpretaram e resolveram as questões ao longo dos primeiros séculos.
            Somente a partir daí, podemos entender a intenção de São Paulo ao falar em certa 'abolição' da lei dos mandamentos. Na verdade, ele estava se referindo ao que nesta lei havia se constituído como tradição oral, isto é, aquelas interpretações que os judeus através do sinédrio faziam para resolver as questões surgidas, as mesmas interpretações que levaram a formação da "tradição dos anciãos" tão condenada por Jesus – em Mateus 15, por exemplo – por causa da tendência dos fariseus em concentrar a atenção das pessoas nos aspectos meramente externos de tais observâncias, ou melhor, no caráter exterior dos dógmatas ou dos dógmasin, mencionados por São Paulo como abolidos na nova aliança pelo próprio Cristo.
            Eis, então, o único modo de entender plenamente a lei, conservando-lhe a unidade e livrando-a de interpretações que a concebem de forma dualista, dicotômica e, portanto, fragmentada. Somente a partir do reconhecimento de que a lei de Deus escrita é um todo indivisível, assim como sua Lei Encarnada é uma única pessoa, se pode chegar à plenitude da fé tanto na lei como em Cristo, sendo esta a única maneira de entender a relação entre a antiga e a nova aliança. Esta é a plenitude daquela, e não a sua abolição.
Portanto, a nova aliança, o novo testamento, significa o fim da dívida humana para com a lei de Deus, assim como de toda ordenança ou interpretação judaica desta lei a fim de que vivamos em novidade de vida na plenitude da lei, cuja finalidade, e não o fim, é unicamente Cristo para justiça de todo aquele que crê no cancelamento do escrito de dívidas que constava e ainda consta contra todo aquele que transgride a vontade de Deus expressa de modo justo, perfeito e santo nos escritos de Moisés e não nas decisões/ordenanças (= dógmata/dógmasin) dos judeus por causa das quais, disse São Paulo, "ninguém vos julgue" (Col. 2:15-16).
Parece mesmo, que alguns evangélicos sinceros que buscam o pleno conhecimento da verdade de todo o coração estão reconhecendo não apenas que a lei de Deus é una, mas também que exatamente por isso nossa obediência repousa em nos emendarmos com a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Minha intuição, é que a razão de tudo o que está acontecendo se relaciona ao mal-estar de uma crise crescente e inesperada nos mesmos arraiais evangélicos que crescem desesperada e desordenadamente, como também, às fortes inconsistências e sérias lacunas existentes em suas interpretações bíblicas e teológicas.
Oxalá seja Deus servido em mostrar-lhes que o dito de Jesus, tão citado por eles, "misericórdia quero, e não sacrifício" foi uma citação feita por Cristo das profecias de Santo Oséias, o qual, estando em plena antiga aliança, não estava com estas palavras abolindo a lei de Deus e os sacrifícios que esta ordenava, mas apenas mostrando que o fiel cumprimento da lei implica em não julgar o próximo, à semelhança do que faziam os fariseus nos tempos de Jesus, e principalmente em exercer misericórdia sobre "todos e todas" na direção dos quais a liturgia ortodoxa sempre continuará cantando em súplicas: "Kyrie eléison", isso, porém, à semelhança do publicano de uma parábola de Cristo, cuja conclusão nos ensina explicitamente a doutrina da justificação como uma humilde obra da genuína fé que somente opera a partir do momento em que tudo fazemos por amor a Cristo, um amor livre, não condicionado pelas necessidades deste mundo – o amor por Deus sobre todas as coisas que excede a todo entendimento.
De fato, a Ortodoxia é um caminho sem volta e somente nela é possível livrar-se do velho fermento dos novos fariseus! Do império do efêmero ao imutável e incomensurável reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo...



Jairo Carlos S. Jr.
Quaresma de 2008
Igreja Ortodoxa Sérvia
Diocese Leste da América
Capela de São João Crisóstomo
Caruaru – PE

Sobre o Jejum





A Igreja Ortodoxa mantém a prescripção do jejum como instrumento de aperfeiçoamento e santificação dos seus fiéis.Estamos no meio da nossa Grande Quaresma, que prepara a Festa das Festas a Pascoa do Senhor, a Santa e Gloriosoa Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A prática do jejum num tempo como o nosso onde se anuncia um Cristo light,parece um contrasenso. Prevalece nos meios religiosos cristãos um Cristo sem Cruz, sem esforço, sem caminho estreito...de consumo, de enfeite. Cristo se adequa às nossas necessidades e desejos...um Cristo solução de todos os nossos problemas...parce um Bom Bril-para mil utilidades, para proporcionar a cada um "sua vitória" e seu "triunfo" particulares. S. Paulo aos Filipenses alerta: "Porque todos buscam o que é seu, e não o que é de Cristo Jesus" (Fil 2:21).
Mas qual é a importância do jejum hoje? Um jornal de circulação nacional publicou a noticia de que mais da metade da população brasileira está acima do peso.Se por um lado os habitos alimentares dos brasileiros não são muito saudáveis, por outro,cada vez mais a cultura do consumo mostra uma falta de limites e de controle na maneira, também, de alimentar-se. Nem só de pão vive o homem...disse nosso Senhor. O jejum é uma prescripção adequada as necessidades do corpo e da alma pois nos ajuda a ter dominio sobre nós mesmos, sobre nossos apetites e paixões. Cristo recomendou aos seus discípulos jejum e oração para expulsar os espíritus impuros...as paixões que nos dominam.As restrições alimentares da quaresma, o jejum e a abstinência contribuem para que nos tornemos, pelo esforço e aprendizagem receptáculos da Graça de Deus que nos auxilia a lutar o bom combate. "Velai, estais firmes na fé, portai vos virilmente e esforçai vos" ( I Cor 16: 13).
A sociedade contemporânea desconhece limites ou mesmo a moderação, que os filósofos gregos apreciavam tanto na educação do povo. Hoje em dia estamos muito longe de qualquer parâmetro de moderação, a regra é o exceso, o exagero, a velocidade, a gula, a ganância.
A voracidade é a marca do nosso tempo
O consumo de drogas, sinal dos tempos é a voracidade com que se tenta apaziguar a vertigem que toma conta das almas desprovistas de sentido para suas existencia. Prisioneiras de um mundo fechado em si mesmo que conduz ao nada; a droga é uma tentativa frustrada para "mudar o mundo" vive-se a a mais cruel das ilusões; a droga é um objeto mágico que nos dará um estado novo, poderoso, brilhante e que nos tornará "super homens" como Adão, os homens de hoje querem ser "deuses" por seus próprios meios.
Não existe comunhão, mas consumo-como as feras famintas devoram suas presas. O mundo não é mais eucaristia- o homem desde o Paraiso escolheu afastar-se de alimentar-se de Deus e escolhe alimentar-se do mundo. " Não vos conformeis com este mundo" (Rom 12:2).
Porque Deus não é mais o nosso alimento, porque não dependemos dele para viver ( ou pensamos) queremos a vida fora da Vida...encontramos a morte fria e desoladora desprovindo a nossa existência de finalidade. " Até quando geração incredula vos suportarei?" (Mc 9:19)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A Via Espiritual do Oriente Cristão






A Via Espiritual do Oriente Cristão

Rev. Jairo Carlos S. Jr.
Igreja Ortodoxa Sérvia
Diocese Leste da América
Pensilvânia – USA
Missão Ortodoxa de São João Crisóstomo
Caruaru – PE
Quaresma dos Apóstolos, 2011

Porque o que semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção;
mas o que semeia no Espírito,do Espírito ceifará a vida eterna
São Paulo, Apóstolo

Introdução:

  • Se comparássemos as espiritualidades contemporâneas à antiga experiência inglesa de Robin Wood, certamente, encontraríamos aquelas que fazem recair o acento sobre o exímio uso do arco e da flecha, e dos demais instrumentos por aquele bando de justiceiros, como seria o caso das espiritualidades que enfatizam instrumentos específicos, tais como, a Bíblia, a glossolalia, e etc. Outras faríam recair o acento sobre o chefe do bando, como seria o caso das espiritualidades centradas em líderes carismáticos que arrebatam multidões. Ainda outras faríam recair o acento sobre o bando em si mesmo, como no caso das espiritualidades que enfatizam o alto teor de participação da comunidade humana, dos grupos organizados e etc, geralmente, subversivos e heróicos.
  • A via espiritual do oriente cristão, longe de criticar os mais diversos tipos de espiritualidade em suas respectivas ênfases, apenas se dá ao trabalho de perguntar, quer aos Robin Woods, quer aos seus grupos com os seus mais diversificados instrumentos, a respeito da vida interior de todos e de cada um, a respeito da harmonia indispensável da vida interior dos líderes e de suas comunidades e a conseqüência disso para o uso dos instrumentos de efetivação de suas propostas.
  • Para o oriente cristão, a alma humana é não só o ponto de partida, mas a própria espiritualidade em si mesma, razão para fazer recair toda sua ênfase e prática na experiência de interiorização espiritual a partir do legado deixado pelos santos padres do deserto e monges hesicastas de outrora que descobriram assim uma espiritualidade absolutamente prática e atualmente indispensável à efervescência de espiritualidades contemporâneas, geralmente alheias ao cuidado mais profundo com a vida interior do próprio sujeito e ator de toda e qualquer proposta difundida – o ser humano.
  • De acordo com São Paulo, apóstolo, no texto acima, toda a vida cristã e, especificamente falando, a espiritualidade cristã deve se ater à semeadura espiritual, única capaz de produzir frutos eternos. Afinal, a semeadura feita na carne tem por fim último a corrupção, isto é, a transitoriedade, um inevitável destino desprovido de imortalidade, mesmo quando repleto dos mais legítimos ideais humanos.

I.                    As Faculdades da Alma de acordo com São Gregório Palamas
– Espiritualidade Grega e a Síntese de Tessalônica –

  • Uma espécie de extrato da experiência dos santos padres do deserto e uma madura suma da espiritualidade hesicasta nos foi legado pelos escritos de São Gregório Palamas, o qual nos sintetizou a tradição do deserto a respeito das faculdades da alma que designou com os cinco termos gregos que seguem:
nouV (nus) – espírito
(responsável pelo relacionamento com Deus e harmonia interior)
  • A primeira faculdade da alma humana é o nouV que foi criado como estando voltado para cima, na contemplação de Deus, de onde irradiava a Luz Incriada (contemplada na história da salvação sobre o Monte Tabor na Face de Cristo, o último Adão, e ao longo da história da Igreja nos Santos Ícones e na experiência místicas dos santos) sobre todas as demais faculdades da alma. No entanto, toda sorte de trevas envolveu a alma humana desde que, com o primeiro Adão, o nouV voltou-se para baixo, na contemplação de si mesmo, sendo contudo esta última contemplação a forma de recolhermos o nosso espírito (o nouV) a fim de atingirmos a contemplação das realidades divinas.
logoV (logos) - razão
(responsável pela justificação racional, ou seja, a elaboração)
  • O logoV tem sido confundido no ocidental com o nouV, razão porque a inclinação, e a própria natureza, da teologia ocidental é intelectiva e não mística. O logoV, a segunda faculdade da alma humana, é a mais imediatamente iluminada ou obscurecida pelo nouV não se confundindo entretanto com ele, sendo este também o motivo real para submetermos inteiramente nossos raciocínios e elaborações à contemplação divina, à teologia mística, e não aos sofisticados produtos das justificativas racionais e elaborações sistemáticas da Verdade Divina, a qual, por sua vez, trata-se de uma Pessoa e não está meramente circunscrita às palavras por ela ensinadas.
doxa (dóxa) - opinião
(responsável pela volição, ou seja, a vontade)
  • A doxa é não somente a faculdade mais diretamente vinculada ao logoV, mas também está, em sua presente condição, em forte desarmonia com ele. A partir e por causa da queda, a volição (representada por Eva) e a razão (representada por Adão) entraram em desarmonia não mais gozando de uma relação de amor mútuo (cujo responsável, e não único realizador, é o homem) e submissão recíproca (cuja responsável, e não única realizadora, é a mulher), como ao princípio.
jantasia (fantassía) - imaginação
(responsável pela reflexão criativa)
  • A quarta faculdade da alma humana – e uma das mais perigosamente desarmonizadas com as demais – é a jantasia. Tendo como principal função a criatividade que, em tese, seria a que deveria estar mais vinculada à Deus, enquanto Criador. No entanto, a jantasia tem servido como acesso às sugestões do inimigo, aos estímulos do corpo e às influências obscuras das demais partes da alma humana obscurecida pelo pecado.
aisJesiV (áisthesis) - sensação
(responsável pela percepção extra-sensorial)
  • É a faculdade mais vulnerável da alma e mais diretamente vinculada ao corpo.

II.                  O Livre Arbítrio e as Faculdades da Alma em São Theophan
Espiritualidade Russa e a Ciência da Alma –

  • Uma forma concreta de se colocar à caminho da via espiritual do oriente cristão tem sido fortemente exposta por uma dos maiores clássicos da espiritualidade ortodoxa russa A Vida Espiritual e como estar familiarizado com ela, um estudo por entre as misteriosas dimensões da ciência da alma humana, escrito por São Theophan, o recluso.
  
  • Algumas das linhas-metras de tão gloriosa ciência são:
  
  1. Somente um ambiente que favoreça a liberdade e a consciência de si é capaz de manter viva a alma humana, razão porque, em contrapartida, o inferno, para o homem, está vinculado à consciência que tem de si mesmo e da ausência de liberdade para exercê-la.

  1. Se nós temos problemas em nossa vida, isso se dá quase sempre não tanto por causa de nossas inclinações doentias e corações enganosos quanto por causa de uma lacuna de zelo e fervor em relação àquilo que é verdadeiramente digno.

  1. Nós temos concentrado nossa atenção na vida deste mundo que é, em última análise, pura vaidade e muito semelhante à vida vazia dos animais, não sendo por isso mesmo vida de modo nenhum, ainda que a realidade não se nos mostre desta maneira e nos imponha que a vida com Deus não seja vida.

  1. Devemos nos ater à seguinte proposta: tudo o que é verdadeiramente digno pertence à própria estrutura da natureza humana, razão porque tudo o que precisamos redescobrir está vinculado ao modo de vida como fomos criados por Deus.

  1. A maior evidência de que a vida deste mundo é que não se constitui como a verdadeira vida está no fato de que ela sempre separa da liberdade e submete à uma cruel escravidão aos que lhe são devotos, razão porque o orgulho, a hipocrisia e o egoísmo teimosamente persistem.

  1. A fim de nos apegarmos ao que é verdadeiramente digno, nós precisamos aprender a guardar o nosso coração de tudo o que nos é simpático e atrativo neste mundo para vivermos nele apenas na carne (fisicamente), mas não nos apegarmos a ele com toda a intensidade de nossa alma (espiritualmente), o que acontecerá inevitavelmente se nos dedicarmos a um cuidado excessivo com as realidades de nosso corpo.

  1. A predominância da vida intelectual e carnal como atmosfera de nosso estado pecaminoso e a supremacia da vida espiritual como norma da verdadeira vida do homem.

III.                Os Logismoi e o Combate Interior segundo Evágrio Pôntico
 – Espiritualidade Egípcia e o Método da Oração Interior –

  • Cerca de duzentos e cincoenta anos depois da comunidade do Ponto receber as epístolas de São Pedro, nasceu ali – em 345 – Evágrio, o qual morava na propriedade da família de Basílio (onde Basílio e Gregório de Nazianzo vieram fazer um retiro a fim de experimentarem uma experiência monástica). Depois de algumas amarguras na vida, Evágrio é obrigado a mudar-se para Jerusalém, onde é aconselhado a viver como monge no Egito. Ali, desenvolveu um método espiritual que visa purificar a parte apaixonada da alma, o lento trabalho de purificar o coração através de uma análise dos movimentos da alma e do corpo, dos impulsos, das paixões, dos pensamentos. A estes últimos, Evágrio chama de "logismoi", designando-os como:

gastrimargia (gastrimargia) – gula
jilarguria (filargyría) – avareza
porneia (pornéia) – obsessão sexual
orgh (orgê) – cólera, patologia do irascível
luph (lýpe) – tristeza, melancolia
kenodoxia (kenodoxía) – vanglória, inflação do ego
uperhjania (hyperefanía) – paranóia, delírio esquizofrênico

  • Segundo Evágrio, os logismoi desorientam a pessoa humana fazendo-a perder o sentido de sua finalidade primeira – a união com Deus. Os logismoi são as doenças do velho homem somente remediadas pela chamada apaJeia (apathéia) – um estado não-patológico do ser humano, um estado de espontaneidade, de inocência, de simplicidade (palavra próxima do verbo apaJanatizw (apathanatízo – divinizar, imortalizar). Trata-se de um estado da inteligência que vê as coisas como elas são, sem projetar-se nelas com suas memórias, suas idéias, suas ideologias, seus ídolos. É estado de calma e de saúde do cérebro, estado de pureza de coração, acesso a uma dimensão do amor que não depende de circunstâncias, um estado de luminosidade e leveza, a possibilidade de uma participação real de nosso ser espácio-temporal na vida divina – o estado de oração por excelência obtido por meio de uma técnica de oração, um método centrado na oração interior, responsável pela guarda do nouV.
  • É a esse respeito que a Filocalia nos conta que um irmão perguntou ao abade Agatão: "Abade, dize-me o que é melhor: o penoso trabalho do corpo ou a guarda do espírito?" Agatão respondeu: "O homem é semelhante a uma árvore: o trabalho do corpo, são as folhas; a guarda do seu interior é o fruto. Está escrito: "Toda árvore que não produz bom fruto será cortada e lançada ao fogo'. Daí se conclui claramente que todo o nosso esforço deve ter por objeto os frutos, ou seja, a guarda do espírito. Mas também são necessários a sombra e o adorno das folhas, isto é, o trabalho do corpo".
  • A partir de tão valioso diálogo, Nicéforo, o solitário, conclui: "Admirai como nosso santo se expressa a respeito dos que não têm a guarda do espírito. Àqueles que só se podem orgulhar da vida ativa, diz ele: 'toda árvore que não dá fruto', ou seja, a guarda do intelecto (nous), mas que tem apenas folhas, isto é, a vida ativa, será cortada e lançada ao fogo. Terrível sentença, meu Pai!".

IV.               As New Realities of Life segundo o Abade Vasileios do Iveron
– Espiritualidade Athonita e a Ressignificação de Tessalônica –

  • Da ingerência do aparentemente desatualizado American Way of Life às invasivas influências dos atuais Reality Shows, pouco se acredita na poderosa transformação estabelecida pelas New Realities of Life do Reino dos Céus em meio aos homens, um tanto imperceptíveis, mas encontradas naquele monasticismo interiorizado exposto por Vasileios por ocasião da 4ª. Conferência de Jovens na Grécia (1989), com o tema: "O Jovem num Mundo em Mudança".
  • Já na 1ª. aos Tessalonicenses, São Paulo fala de algo bem mais sublime do que apenas anunciar o evangelho ao nos revelar as profundezas de seu ser apostólico nas palavras:
"quiséramos comunicar-vos... as nossas próprias almas
...orando abundantemente dia e noite,
para que... supramos o que falta à vossa fé
...para que sejais irreprensíveis em santidade diante de nosso Deus
 ...com todos os seus santos" (I Ts. 1:8 e 2:10, 13)

  • Em nossos dias, a jovem e primitiva Tessalônica cede lugar ao cristianismo interiorizado proposto pelo monasticismo athonita que passa pelos dez pontos seguintes:

(1) As novas realidades de vida em Cristo são traduzidas em uma existência católica, pois quem quer que perde sua alma em prol de outrem, encontra-se a si mesmo.
(2) Nós vivemos na carne como se estivéssemos vivos sobre os Céus, sendo esta também a mais genuína revelação do verdadeiro homem, aquele que não vive para si mesmo, mas é benção para outrem.
(3) A alma de cada um de nós se constitui como algo mais digno do que o universo inteiro, razão porque precisa separar-se das realidades deste mundo a fim de a ele retornar, sendo capaz de unir-se a todas as coisas.
(4) O retorno ao mundo é antecedido pelo retorno à nossa própria alma em busca da graça que possibilita o encontro consigo mesma, com o ritmo de sua vida no qual se consegue falar a sua linguagem e pastorear o "outro aprisco" profetizado pelo Bom Pastor.
(5) A pessoa, como um todo, apenas pode compreender a realidade em um processo de total doação a Deus, ponto em que Deus dá ao homem não o conhecimento do que é transitório, mas concede-lhe a graça que trouxe todas as coisas da não-existência à existência, ofertando-lhe o que o transfigura em um ser virtualmente incriado e "deus mediante a graça".
(6) A graça é a "inconcebível manifestação", cf. São Máximo, somente conferida à pessoa que espera pacientemente, ou seja, que não fere a outros, àqueles que através de dada "dúvida metódica" chegam à conclusão: "Eu perdôo, logo existo!".
(7) O ponto não reside em quantas línguas, linguagens ou idiomas alguém é capaz de falar, mas se ele tem ou não ido além da morte, aprendendo a linguagem da imortalidade, a linguagem da alma, visto que Deus não é compreendido por qualquer das linguagens deste mundo por ser mais alto do que todo conceito de divindade (uperJeoV - hypertheos).
(8) Bem-aventurado é somente quem, diante de Deus, considera a todos os homens como se estivesse diante do próprio Deus e procura a salvação dos outros como se fosse a sua própria, e, reputando a si mesmo como a "escória de todas as coisas" (I Cor. 4:13), termina por achar espaço para todas as coisas dentro de si mesmo ao invés de delas se separar.
(9) Se alguém é encontrado digno de considerar-se menor do que cada realidade criada, esse alguém está sendo conduzido à comunhão com todas as coisas e, somente assim se rebaixando, é possível encontrar a via de ascenção para Deus.
(10) Bem-aventurado é aquele que se entende como sendo um com todos os homens, à medida que se enxerga a si mesmo em cada um de seus irmãos de humanidade.
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