sábado, 21 de abril de 2012

Livrando-nos do Velho Fermento dos Fariseus!




– A Ortodoxia como a Plenitude da Lei de Deus –



            Em sua obra O Império do Efêmero, o sociólogo francês Gilles Lipovetsky abalou, de certo modo, o mundo erudito ao afirmar a moda como uma espécie de "carro-chefe" das mudanças que se processam em nossos dias. É claro que Lipovetsky referia-se a moda dos estilistas, mas isso me faz entender que cada vez mais se torna verdadeira uma idéia que sempre me intrigava quando eu ainda estava na igreja evangélica: aquilo que ocorre nos Estados Unidos e Canadá não leva muito tempo para ser reproduzido no Brasil como última moda.
Esta idéia me intrigava porque o que se reproduz não apenas são acontecimentos significativos vividos pelas igrejas protestantes norte-americanas, mas também todo tipo de novidades emergentes, desde as modas teológicas mais esdrúxulas à alarmante quantidade de práticas de adoração que, segundo a ala reformada calvinista apelando para a famosa Confissão de Westminster, não passam de "invenções dos homens e sugestões de Satanás".
Aos poucos fui assumindo que deveria haver algum tipo de culto que não sofresse a alteração das doutrinas enlatadas e modas importadas de toda natureza que invadiam as denominações evangélicas brasileiras. Algo mais original e perene que, na minha incredulidade, ainda não sabia ser possível existir intacto.
            Hoje, o que me ocorre relaciona-se aos últimos acontecimentos dentro do protestantismo. Trata-se do fato de evangélicos de todas as partes do mundo – incluindo seus clérigos ou pastores como são chamados – estarem convergindo para a fé ortodoxa em um agudo contraste com todo tipo de moda e em franca contradição com suas doutrinas e práticas de adoração. O que está realmente acontecendo? A esse respeito, talvez fosse bom começar pela pergunta:

O que está acontecendo ao redor do mundo?

            Eu pensava ser o único pastor evangélico brasileiro a me converter a Ortodoxia, mas agora me vejo com um ex-colega de seminário, de ministério pastoral, de mestrado e doutorado, assumindo a fé ortodoxa e dizendo, assim como me ocorreu há tantos anos atrás, tratar-se de um caminho sem volta. Ainda o ano passado, nossa pequena comunidade recebeu pelo batismo e crisma um ex-pastor evangélico com algumas de suas ovelhas. Isso confere com os inúmeros testemunhos de pastores norte-americanos que ingressam na Igreja Ortodoxa, como demonstra o livro Coming Home – Why the Protestant Clergy are becoming Orthodox que contém depoimentos de pastores anglicanos, episcopais, presbiterianos, batistas, assembleianos, e de todo tipo de igrejas evangélicas que estão se convertendo à Ortodoxia, alguns dos quais com suas comunidades inteiras.
Recentemente, recebi através de e-mail o seguinte testemunho de alguém que preferi não mencionar o nome por não conhecê-lo. Ele escreveu a um site ortodoxo nos seguintes termos:
Bom dia,
Estou muito feliz com o ingresso no grupo, sinto que estou no caminho certo para meu aprendizado.
Vou contar um pouco de mim, através da experiência e vivencia religiosa, sou batizado na fé católica romana, não posso dizer que sou um assíduo freqüentador de alguma paróquia, pois não me encaixei em nenhuma, não por falta de fé, mas por uma certa convicção pessoal que nas igrejas não se ministram somente a religião, costuma sim haver uma mistura de política, interesses pessoais e clericais, uma série de fatos que ao meu ver afastam a verdadeira fé. Não se prega textos verdadeiros e sim uma adaptação de fatos que mudam de acordo com a sociedade, eu acho errado, nós é que temos que nos encaixar na fé, não a fé em nós, com essas interpretações a palavra original é perdida e modificada e com o tempo os valores são perdidos, visto a situação da atual sociedade que vivemos. Aos meus olhos, vejo pessoas que se movem ao seu próprio bem e não no do próximo ou do todo, a vontade de Deus. Careço de estudos, de exemplos. tenho fé em Cristo, acredito nele e em Maria sua mãe, acredito também na fé que moveu muitos mártires e suas histórias servem de exemplo e força. Nunca perdi a esperança de encontrar os verdadeiros ensinamentos, mas toda vez que tento debater com algum religioso, ou ele se esquiva, ou prega barbaridades como vejo na fé protestante. Acredito que a seriedade dos Ortodoxos tenha como base os ensinamentos originais. Perdoem-me se falei, besteiras mas é o meu ponto de vista hoje. Sei que todos podem me ajudar e acredito que quem procura a verdade , encontra, com justiça e merecimento.
Muito obrigado, pelas boas vindas e repito, estou muito feliz de estar no meio de vocês todos.

            Ouvi recentemente de um pastor anglicano que quando se formou nos Estados Unidos foi aconselhado por um colega de denominação a comprar livros de teólogos ortodoxos, o que não tem exitado em fazer, possuindo em sua residência obras como On Human Being – A Spiritual Antropology, de Olivier Clement, e outras, além de muitos ícones ortodoxos. Ele me disse que esse seu colega lhe afirmou na ocasião que estaria caminhando definitivamente para a Igreja Ortodoxa dada a crise porque passa o protestantismo naquela nação.
            A respeito deste mesmo pastor ainda tenho algo muito significativo a contar. Ele me disse que um dos principais autores anglicanos de Londres, chamado Michael Harper, que era um daqueles pastores que divulgavam em muito o pentecostalismo em meio à sua igreja, também ingressou na Ortodoxia. Ele conheceu o pastor Harper em Singapura. Trata-se do mesmo padre ortodoxo que acolheu um ex-aluno meu de teologia em sua capela em Londres. O fato é que, o ano passado, meu ex-aluno ligou para dar a notícia de que agora havia se convertido à Ortodoxia por causa do fato de que a mesmíssima liturgia que nós celebramos no Brasil é a que o Padre Michael Harper celebra em Londres. Que alegria! Ainda mais quando li um artigo intitulado The Waves Keep Coming in The Evanglical, Charismatic, Orthodox Axis em que o Padre Michael Harper menciona não somente a relação entre John Wesley, o avivamento inglês e a Igreja Ortodoxa, mas também chega a mencionar o contato de Alexander Boddy – o iniciador do movimento pentecostal entre os anglicanos em Londres, Singapura e outros lugares – com a Igreja Ortodoxa. O pastor Boddy passou um tempo em um mosteiro ortodoxo na Rússia, de onde trouxe ícones que expunha na sala de sua residência em Londres.
Quanta novidade, não? Seriam elas, "invenções dos homens" ou mesmo "sugestões de Satanás", conforme as expressões da confissão reformada calvinista de Westminster? Tão sacrílego posicionamento está alicerçado em uma falsa interpretação da lei de Deus responsável por dividir a lei de Moisés – e isso não apenas para fins didáticos – naquilo que chamam de "lei moral" (os dez mandamentos) e "lei cerimonial" (os preceitos relacionados ao culto). Segundo os calvinistas – que são neste aspecto seguido pela maioria dos evangélicos – somente a lei moral vigora até hoje em meio à nova aliança instituída por Cristo, enquanto que a lei cerimonial foi por Ele abolida. Respondamos a tão impiedosa heresia, levantando mais uma pergunta:

Por que a fé ortodoxa está sendo assumida pelos evangélicos?

            A fé ortodoxa jamais inventou, e muito menos, padronizou uma forma de adoração. Sua liturgia é única, imutável e sem alterações não porque tenha engessado e mantido qualquer tipo de tradicionalismo ou conservadorismo em sua adoração, como querem alguns, mas simplesmente porque a liturgia ortodoxa foi estabelecida pela lei de Deus conforme escrita e instituída por Moisés nos primeiros livros da Bíblia e, portanto, não é uma padronização humana ou uma imposição imperial de Constantinopla, mas uma instituição divina a permanecer intacta como atesta o próprio Jesus no sermão do monte ao afirmar:

Mh nomishte oti hlqon katalusai ton nomon... alla plhrwsai
Não penseis que vim revogar a lei... vim para cumprir (ARA)
Não cuideis que vim destruir a lei... mas cumprir (ARC)

            Aqui, algumas observações precisam ser feitas. O verbo grego 'katalysai' é traduzido ora por destruir, ora por revogar, o que equivale – como é o seu sentido literal – a traduzi-lo por: precipitar. Em outras palavras, Cristo não veio para jogar a lei em um precipício a fim de que fosse destruída ou, como é uma linguagem mais jurídica, revogada, abrogada ou abolida. E por falar no verbo abolir, vale ressaltar que é o verbo que, em algumas versões, aparece em Efésios 2:15 para se referir também à lei:

ton nomon twn entolwn en dogmasin katarghsaV
a lei dos mandamentos na forma de ordenanças aboliu (ARA)
a lei dos mandamentos que consistia em ordenanças desfez (ARC)

Trata-se de uma contradição? Será que Jesus disse que a lei não seria abolida e São Paulo disse o contrário? A esse respeito, devemos firmar que há bons motivos para respondermos com um não a esta pergunta. O primeiro motivo reside no fato de que o verbo utilizado por São Paulo não é o mesmo utilizado por São Mateus ao fazer menção das palavras de Jesus no sermão do monte. Isso pode ser confirmado tanto no texto grego como em algumas traduções. Mas, é verdade que a isso alguém poderia objetar que se trata de verbos com um significado sinônimo. Isso é verdade mesmo. Todavia, o segundo motivo de não haver contradição entre as palavras de Cristo e as de São Paulo reside em uma melhor compreensão da expressão 'en dógmasin' (= em ordenanças). Aquilo a que São Paulo está se referindo como algo abolido não é a lei dos mandamentos, quer em seu aspecto moral, quer em seu aspecto cerimonial, e sim aquilo que "consistia em ordenanças" ou possuía "forma de ordenanças". Eis, então, porque a contradição entre Jesus e São Paulo é apenas aparente. E para descobrir isto, é somente focalizar mais uma pergunta: De que "ordenanças" falava São Paulo?
            A resposta a esta pergunta vem da expressão usada por São Lucas no livro dos Atos dos Apóstolos quando relata o episódio do primeiro concílio da Igreja que se deu em Jerusalém. O concílio se reuniu para resolver uma questão que havia surgido entre judeus e gentios no meio da Igreja. Ao final deste concílio, diz São Lucas, pareceu bem ao Espírito Santo e aos apóstolos resolver a questão através do envio de alguns irmãos às igrejas a fim de comunicarem "as decisões (= ta dogmata = ta dógmata) tomadas pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém". Tais decisões, que os demais concílios da Igreja continuaram a chamar de "dogmas" iniciavam toda uma tradição oral que se estabeleceria na Igreja, a qual foi posteriormente sendo registrada nas atas dos concílios, o que resultou na formação da Tradição Apostólica, ou seja, o modo pelo qual os concílios interpretaram e resolveram as questões ao longo dos primeiros séculos.
            Somente a partir daí, podemos entender a intenção de São Paulo ao falar em certa 'abolição' da lei dos mandamentos. Na verdade, ele estava se referindo ao que nesta lei havia se constituído como tradição oral, isto é, aquelas interpretações que os judeus através do sinédrio faziam para resolver as questões surgidas, as mesmas interpretações que levaram a formação da "tradição dos anciãos" tão condenada por Jesus – em Mateus 15, por exemplo – por causa da tendência dos fariseus em concentrar a atenção das pessoas nos aspectos meramente externos de tais observâncias, ou melhor, no caráter exterior dos dógmatas ou dos dógmasin, mencionados por São Paulo como abolidos na nova aliança pelo próprio Cristo.
            Eis, então, o único modo de entender plenamente a lei, conservando-lhe a unidade e livrando-a de interpretações que a concebem de forma dualista, dicotômica e, portanto, fragmentada. Somente a partir do reconhecimento de que a lei de Deus escrita é um todo indivisível, assim como sua Lei Encarnada é uma única pessoa, se pode chegar à plenitude da fé tanto na lei como em Cristo, sendo esta a única maneira de entender a relação entre a antiga e a nova aliança. Esta é a plenitude daquela, e não a sua abolição.
Portanto, a nova aliança, o novo testamento, significa o fim da dívida humana para com a lei de Deus, assim como de toda ordenança ou interpretação judaica desta lei a fim de que vivamos em novidade de vida na plenitude da lei, cuja finalidade, e não o fim, é unicamente Cristo para justiça de todo aquele que crê no cancelamento do escrito de dívidas que constava e ainda consta contra todo aquele que transgride a vontade de Deus expressa de modo justo, perfeito e santo nos escritos de Moisés e não nas decisões/ordenanças (= dógmata/dógmasin) dos judeus por causa das quais, disse São Paulo, "ninguém vos julgue" (Col. 2:15-16).
Parece mesmo, que alguns evangélicos sinceros que buscam o pleno conhecimento da verdade de todo o coração estão reconhecendo não apenas que a lei de Deus é una, mas também que exatamente por isso nossa obediência repousa em nos emendarmos com a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Minha intuição, é que a razão de tudo o que está acontecendo se relaciona ao mal-estar de uma crise crescente e inesperada nos mesmos arraiais evangélicos que crescem desesperada e desordenadamente, como também, às fortes inconsistências e sérias lacunas existentes em suas interpretações bíblicas e teológicas.
Oxalá seja Deus servido em mostrar-lhes que o dito de Jesus, tão citado por eles, "misericórdia quero, e não sacrifício" foi uma citação feita por Cristo das profecias de Santo Oséias, o qual, estando em plena antiga aliança, não estava com estas palavras abolindo a lei de Deus e os sacrifícios que esta ordenava, mas apenas mostrando que o fiel cumprimento da lei implica em não julgar o próximo, à semelhança do que faziam os fariseus nos tempos de Jesus, e principalmente em exercer misericórdia sobre "todos e todas" na direção dos quais a liturgia ortodoxa sempre continuará cantando em súplicas: "Kyrie eléison", isso, porém, à semelhança do publicano de uma parábola de Cristo, cuja conclusão nos ensina explicitamente a doutrina da justificação como uma humilde obra da genuína fé que somente opera a partir do momento em que tudo fazemos por amor a Cristo, um amor livre, não condicionado pelas necessidades deste mundo – o amor por Deus sobre todas as coisas que excede a todo entendimento.
De fato, a Ortodoxia é um caminho sem volta e somente nela é possível livrar-se do velho fermento dos novos fariseus! Do império do efêmero ao imutável e incomensurável reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo...



Jairo Carlos S. Jr.
Quaresma de 2008
Igreja Ortodoxa Sérvia
Diocese Leste da América
Capela de São João Crisóstomo
Caruaru – PE

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